Correspondência: Outubro Rosa

Cara amiga,

Hoje senti uma vontade imensa de lhe escrever e, garanto, é uma daquelas vontades inadiáveis e insubstituíveis. Explico: é que fui ao parque, tirei o dia para que ele fosse diferente de um dia comum da nossa rotina de segunda a segunda e, quando dei por mim, estava eu diante de um lago, aspirando o ar com as luzes suaves dos tímidos raios solares soprando sobre minha face. Naquele momento eu já dialogava com você, conversávamos muito e é isso que quero lhe contar agora, da nossa longa conversa em particular…

É que, de modo, diria, espontâneo, deixei-me divagar pelos meus pensamentos e pelo momento pelo qual estou passando e, como endereçamos nossa fala sempre a alguém, me peguei conversando com você… quantos mistérios há nisso?! Claro que não por acaso foi você, que é a amiga das letras, do alfabeto que tece a vida e nos faz correr atrás para darmos conta de falar! O som é o primeiro balbucio da vida? E a palavra? Onde fica essa tecitura que nos compõe enquanto seres falantes!

Então. Estou me correspondendo agora… bonito isso, né? Te enviar uma carta por escrito e pelo correio, pois quero resgatar o tempo de espera que o trabalho do dia a dia nos rouba. Me correspondo, também, porque quero ser correspondida nesse meu rebelde pedido epistolar! Não é pacífico e, talvez, não seja nem mesmo amoroso, pois é o incômodo que me move ao resistir a todas as formas de comunicação em tempo “real”.

Quero a espera! A espera de escrever o que lhe escrevo agora, de enviar a carta pelo correio, de esperar pela sua resposta, se assim o quiser, claro! É uma forma de nos correspondermos contra todas as expectativas desse tempo imediatista a que chamo de tempo morto!

Mas, pensando bem, talvez seja um gesto amoroso também, esse de nos escrever cartas! Amoroso para com a nossa condição de ser! Amoroso para com a nossa amizade de tempos remotos e para com a nossa condição de habitantes de um corpo e passageiros do tempo! Somos todos desamparados!

Estou divagando… mas esse decurso me leva ao encontro e de volta a nossa conversa do parque!

Me perguntei o que fazia lá, em plena segunda feira, parada, olhando e admirando a natureza, enquanto todos, ou a grande maioria, estavam indo ou já se encontravam no trabalho?

Era plena segunda feira, logo cedo! Me dei conta de que você estava a semear, provavelmente numa sala de aula ensinando suas letras e eu, a ver sementes no parque. Havia, bem diante de mim, uma preá atrevida chupando um caroço de manga, parecia uma delícia! Ela se esbaldava e eu com minha Bella companhia a observávamos! Foi aí que me dei conta de que estava diante de algo gracioso! A preá de cor castanho escura comia distraidamente, lambia, cheirava e, com suas pequenas patinhas, virava e revirava aquele caroço!

Minha presença e tampouco a da minha cachorrinha não pareciam perturbá-la!

Foi aí que pensei: o recato não é da ordem da natureza! A natureza não tem recato!

E foi ali mesmo, naquele momento, que resolvi tirar a minha touca e deixar que as falhas entre os parcos fios de cabelos que ainda me restavam ficassem à mostra, tomando sol. Estava eu, com minhas falhas, o sol e a natureza. Fiquei a pensar se o nascimento da palavra também viria da terra, como as mangueiras vêm dos caroços de mangas, como as flores na primavera. Qual seria nossa dívida para com a mãe natureza? Você já viu como é bonito acompanhar uma árvore ressequida do inverno, sem nenhuma folha, e vê-la florescer?! Seus galhos ficam desnudos, todos à mostra, sem pudor!

A natureza não tem pudores!

Não é assim conosco também? Por que sucumbir, se a vida sempre se renova?

Para dar conta de falar o que tento aqui não teria, como Guimarães Rosa já o fez, de cavar a palavra da terra!? Você semeia palavras nas suas aulas e lá estava eu querendo cavucar a origem delas! Acaso poderíamos supor estarmos distantes da natureza e sermos os filhos ingratos? Teríamos nós esse direito de filiação e considerar nada dever a ela?! Refiro-me à mãe natureza! Creio que não, seria por demais não compreender que a roda da vida só faz girar e, talvez, por isso mesmo, amar a fugacidade a despeito do peso das dores que nos visitam. Querer sempre! Mesmo nas despedidas!

Foi aí que descobri e quero lhe dizer: a natureza não tem recato! Ali, naquela cena, era eu a impostora, com um olhar que supõe tudo, tentando adivinhar o que se passava com a preá? Ela estava no seu habitat e não poderia jamais suspeitar que eu tivesse pudores em perder meus fios! A natureza arranca, sem pudores, sem recato! Mas devolve a fartura de suas belezas em forma de mangas maduras caídas do pé. A preá tinha ali refeições para muitas horas.

A natureza devora, mas também sabe ser generosa.

Já o recato é da ordem humana.

Talvez fosse melhor dizermos que a natureza guarda, no instante seguinte aos nossos risos e distrações, o som da voz de quem amamos… para sempre. Aquele sorriso de outrora, no minuto seguinte a uma breve distração de nossas pequenas alegrias, vai-se para ter morada em nossas memórias!

Mãe natureza, é assim que nos referimos a essa personagem que dá a vida, nutre e oferece suas entranhas para nascermos. Lugar de origem e destino irrevogável!

Assim, me despedi da pequena preá depois que retirei a minha touca e fiz o caminho de volta para casa com a certeza de que o recato pode ser a última expressão do que temos de mais precioso: a nossa humanidade! Quis que o sol tocasse a mim e me inspirasse a força de prosseguir, sempre em frente, na esperança de saber que, no tempo que ainda nos resta, poderemos chorar nossas lágrimas e desaguar nosso pranto! Poderemos, também, viver a fugacidade da alegria, da beleza e riqueza da vida!

Chorar no banheiro, debaixo do chuveiro, sozinha, ou em qualquer lugar, pode ser o que resta de dignidade daqueles sentimentos que nos destroçam! Chore, amiga, chore o seu irmão que se foi e eu choro, do lado de cá, os últimos fios que a água me leva!

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Respostas de 46

      1. Choro daqui de emoção de ler a sua carta, amiga. Me toma por inteiro nas lembranças tb de nossos momentos de alegria e de choro conjunto. E de força para nos encorajarmos a seguir a partir dos encontros não fugazes, de entrega verdadeira, mesmo que por pouco tempo. Toca meu ser. Obrigada por presentear nosso sábado com palavras tão significativas.

  1. Muito lindo seu texto Denise! Desabafo eu diria. Me senti envolvida como se fosse eu a olhar a mãe natureza e seu preá. Parabéns pelas belas palavras!

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