paspatur

Um dia desses precisei levar um retrato para emoldurar, evidentemente, fui até a loja Ateliê.

Para mim parece óbvio, mas para leitores mais jovens o “evidentemente” pode soar estranho.

Explico: essa loja existe desde 1978. Naquela época, em torno dos seis anos, brincava na rua com a vizinhança. Sou daquelas que gostava de rua (ainda gosto), ia para a padaria mais próxima, parava numa revistaria de praça para comprar selos para cartão postal com meu pai, jornal e gibis e falávamos bom-dia para os vizinhos caminhando pelo bairro.

Entrei na loja sabendo que, muito provavelmente, pagaria mais caro pela moldura do que onde mandei imprimir. No dia anterior, quando enviei o retrato para impressão:

Whatsapp:

A senhora quer moldura também?

humm! Vou mandar as especificações.

… …

A atendente respondeu que teria que fazer encomenda, etc. e tal.

Mas já tinha em mente encomendar naquela outra loja, a que existe desde 1978. Quando cheguei, um senhor distinto e elegante levantou-se para me atender. Já o conhecia de vista, pois em algumas vezes que estive lá ele aparecia, verificando, com seu olhar, toda a loja. Era o guardador daquele espaço, o anfitrião, eu sabia disso.

O que não esperava era encontrá-lo sentado à mesa da atendente. Foi ele quem me atendeu. Pegou a fita métrica, também com distinção. Seu gesto era quase o de um artista que, com pincéis, vai dando aqueles toques silenciosos, mergulhados no corpo, gesto e olhar.

Quase arranquei a trena da mão dele com medo de arranhar a foto tão preciosa e frágil, ali, em cima da mesa, exposta, vulnerável. “Oh! Meu senhor, cuide dela, não a machuque!” “Meu coração não aguentaria mais nenhuma ferida no couchê 170g fosco”. Não cedi ao ímpeto de segurar as mãos daquele senhor, talvez pelas mãos delicadas que a pele da velhice fez brilhar entre a trena e a gramatura.

Me segurei, pois a gentileza e elegância com que o anfitrião tratou o retrato formaram a composição de um gesto ao mesmo tempo profissional e artesanal.

Demoramos a escolher, quis saber o que era um paspatur. A ilustradora recomendou o paspatur, balbuciei, entre o soprano e a clave de sol, essa palavra bonita. O anfitrião explicou, mostrou. E o tempo do atendimento foi largo, com vistas e perspectivas da loja. Paspatur ou passe-partout, moldura ou a chave mestra. Gosto de pensar como uma palavra feminina (mania de todo dicionário insistir no masculino).

Enfim, decidi, antes mesmo de saber o preço, que o retrato seria feito lá, na loja de 1978, a loja de rua e que tinha o anfitrião a conversar e a tratá-la como uma raridade. E é!

Antes de sair, enquanto acertávamos o preço, o senhor me disse que teve um cachorro que amou muito, um basset há dois anos, não quero mais cachorro, fiz as contas e tenho receio de ir primeiro do que o cachorrinho. Já estou velho.

Eu ali, sentada na cadeira, escutando. É um pedaço da gente que morre junto. É, sabe que até hoje eu escuto as patinhas dele andando pela casa? Mesmo? Sim. Dizem que os cachorros, quando morrem, voltam e ficam perambulando na casa, eu acredito. Eu também. Seu quadro fica pronto hoje.

Veja Também

Se você gostou do conteúdo, sinta-se à vontade para compartilhar ou deixar seu comentário

Respostas de 23

  1. Lindo ler sobre essas experiências, a ilustradora que indicou poderia até ter explicado que o paspatur é uma moldura de papel com ph neutro (sem ácido) que protege a arte ou fotografia a ser emoldurada, mas aí perderíamos a delícia do descobrimento junto ao especialista que trabalha com molduras e quadros já há tantos anos

    1. Ahhh! Mas aí já não seria soprano. Perderia a descoberta da clave de sol ao soletrar essa palavra tão bonita, importada da França e guardiã da arte 😘💕💕💕

  2. É no gesto delicado do velho distinto, belo e nobre, que se revela a eternidade do afeto.
    Seu cuidado com a foto é também cuidado com a vida, com as memórias que o tempo não apaga.
    E, nesse instante simples, a humanidade resplandece como ouro suave que jamais enferruja, pois o amor aflora em todas as dimensões em que a beleza da humanidade floresce.

  3. Como alguém formada em Artes como eu, lido com algumas pessoas como o senhor descrito e realmente achei que fora descrito genuinamente. Já a cachorrinha do retrato ( portrait), uma querida que está fisicamente ausente. Amei a escrita!

  4. A sua escrita é detalhada e isso me deixa com vontade de ler e sentir a narrativa até o final. Quando começo a ler não consigo parar.
    Saudades da Belinha ❤️

    1. Linda escrita, Denise! Rica em momentos passsados e presentes, imaginei e vivenciei junto com você. Como é bom e prazeroso ter lembranças de uma infância feliz!!

  5. As melhores memórias são da nossa infância, onde ruas, praças, revistaria e um bom dia para vizinhança, compõe um universo tão nostálgico e acolhedor. Como é bom essas histórias 😍

  6. Belíssima crônica para iniciar a semana com a esperança de que o passado passe-partout e nos faça andar sempre pra frente. 😍

  7. Lembrei-me da nossa leitura de “Luminol”. Como é importante acertar os títulos! Eu não sabia o que era paspatur, acredita? Adorei descobrir por aqui, através do seu olhar delicado e sensível.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Veja Também

Informações de Contato

© 2023 Denise Fleury