Setting

por Denise Fleury

Um dia desses, reli um escrito no qual Lacan afirma que o nosso desejo se manifesta ainda na infância e, às vezes, passamos toda uma vida em busca dessa realização sem nos darmos conta. A frase, nem me lembro de qual livro e, não necessariamente, eram essas as palavras, me acompanhou por muitos anos. Aquietou-se silenciosamente num canto qualquer dos meus afetos até um dia em que ela retornou à memória e tudo se iluminou.

Eu estava no meu consultório clínico, observando a decoração do espaço e feliz por ter realizado o sonho de montar minha própria sala. Tudo havia sido pensado detalhadamente, eu sabia que queria um ambiente acolhedor e me lembro de pensar que tinha que parecer uma “sala de estar”, era como chamávamos a sala de visitas. Nesse ínterim, entre o suposto esquecimento da frase e o retorno dela, me peguei recordando de quando era criança e fechava as portas do hall da minha casa para brincar “de casinha”. Era um local protegido, para entrar, tinha que ter permissão.

Voltei, em minhas recordações, para a minha pequena “casa”, quando colocava uma mesa, dispunha uma cadeira; às vezes eu era a professora, outras vezes a própria aluna e, nessa troca de papéis, tinha a mãe que buscava a filha na escola, havia o pai que protegia a filha na volta para a casa. Nesse mundo de acontecimentos, as pessoas que habitavam a cena eram muitos e muitas…. As brincadeiras de “casinha” continuavam por dias, semanas, pausavam e eram retomadas, mas me lembro do que mais gostava: a sala de estar ao lado, onde se recebiam visitas.

Nessa sala das minhas lembranças eu me deitava e observava as cortinas de linho que balançavam. A sensação era de conforto. O sofá com as almofadas, a meia luz que adentrava pelas frestas, o silêncio. Era o cômodo da casa onde morei por toda a minha infância. Nesse lugar, as brincadeiras foram ficando para trás à medida que eu crescia, mas o sofá da sala, suas almofadas, as cortinas eram os adereços no espaço que usufruía nos meus momentos de descanso e leitura nas novas fases que se sucederam.

Com o tempo, passei a levar meus livros de cabeceira, deixava ali, ao lado do sofá, ocasionalmente entre uma e outra leitura dava uns cochilos. As brincadeiras foram sendo substituídas pelos meus livros que foram se acumulando, eram capítulos de alguns romances, eram histórias autobiográficas. Depois, foram as visitas que passaram a frequentar minha sala de estar, meu lugar preferido para me reunir com as minhas amigas. O quarto também era, mas como eu o dividia com a minha irmã, era muito frequente irmos para a sala de visitas, era assim que eu a nomeava. Passei quase toda a minha adolescência nessa sala, dando risadas com meus amigos, ouvindo músicas, lendo e… de repente lendo e escrevendo cartas — nessa época, recebíamos cartas pelo correio. Também era meu local de refúgio, quando a tristeza batia corria para lá, para chorar entre as almofadas na companhia daquele silêncio salutar. Sabia que nessa sala eu podia me “perder” e depois retornar em segurança. Podia viver o “caos” ouvindo música, já não se tratava de brincar, mas seu mais fiel substituto: minhas próprias fantasias.

Cresci, me tornei adulta, escolhi como profissão a clínica da escuta, “a cura pela fala”, sonhei e planejei meu consultório, montei e vibrei com cada conquista. Nesse setting tem uma mesa para leitura, um sofá com almofadas, a cortina de linho plissado…tudo que existia na sala da minha infância. Meu local predileto para dar lugar às pessoas que chegam, falam, contam seus segredos, incômodos, dores, sofrimentos e também alegrias; sonham, relutam, temem; brincam, confiam, se entregam, se permitem viver “o caos”, sabendo que há um “galho” onde se apoiam para retornar. Um local de entradas e saídas: uns chegam e ficam, outros não topam, vão embora, outros frequentam por anos e vão fazendo suas descobertas.

Lacan evidencia, assim como Freud, e minhas memórias de infância desvelam que o desejo é o nosso elo mais profundo, o anseio, o anelo, a estima pela qual o sujeito se realiza e comparece ao vivo e a cores. Bem-vindos ao setting!

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Respostas de 13

  1. Amei!
    Me fez refletir sobre a minha “sala de visitas”. Talvez tenha que fazer o resgate de coisas que ficaram esquecidas lá. Algumas provavelmente o tempo desfez, outras podem ter sido arrancadas de mim, mas deve haver ainda aquelas que só foram encobertas pelo pó. Essa são verdadeiramente as minhas.

  2. Excelente texto.
    Simples, direto, bem contado.
    Me deu até vontade de deitar nesse sofá, ler alguma página mágica, tirar alguns cochilos.

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