só tem café com açúcar

Bom dia! Queria um café, sem açúcar por favor?

​O dia estava ameno, daqueles raros aqui no cerrado. Dizia a meteorologia que estávamos recebendo uma frente fria e, segundo as estações do padrão climático, era inverno. Sempre me perguntei que inverno era esse, pois o clima árido e seco, com sua paisagem de árvores retorcidas, lembrava muito mais os climas do deserto e sua sobrevivência nativa do que o inverno do frio nórdico. Essa conversa comigo mesma era antiga. Não tinha a pretensão de resposta, mas sempre era motivo para iniciar um bate papo com desconhecidos e, quem sabe, conseguir que o dono da barraquinha achasse um coco bem gelado, especial, como dizem, o mais gelado da caixa de isopor.

Vishiii! Tem café só com açúcar… 

Vai esse mesmo.

​Nesse dia valia o gosto de café açucarado, pois estava especialmente romântico, havia deixado minha filha e seu namorado ao longe no parque, em meio ao lago, sol,  sombras e a cachoeira natural das pedras, usufruindo um piquenique. Ah! Que romântico, a vida se renovando, enquanto a rotina corrói a convivência diária de tantos casais. 

Quero uma água de coco antes do café. Tá frio, né? Mesmo assim estou com sede.

Então bebe o café primeiro e depois a água de coco.

Ah é? 

O coco vai tirar o gosto do café e esse café aqui tá dos bão.

​Assim fiz, aceitei a recomendação e aguardei. O dono da venda era um homem forte, meio atarracado, mais velho, mas não tão idoso. Quando sorria apareciam seus dentes alumiados. Fiquei com vontade de perguntar se eram de ouro. Será? Talvez tenha sido garimpeiro, pois era daqueles de trabalho suado, dava pra ver, dinheiro contadinho na carteira. Devia pagar por aquele ponto de venda. Certamente. 

​O local é charmoso, barraco de palha, combina com as copas das árvores do parque, ainda estávamos no tempo das folhas verdes e abundantes. Quando a estiagem avança,  toda a paisagem, incluindo seus moradores, adquire tons pasteis. O trabalhador de cabelos grisalhos, negro, tamanho baixo — talvez um metro e sessenta? — serviu café e pão de queijo assim que um rapaz jovem chegou. Pegou seu dinheiro e primeiro o guardou, depois lavou as mãos. Era só ele, não podia contar com ajudante. Imaginei que alguém chamaria a vigilância sanitária, pois ele estaria descumprindo a exigência de uma pessoa para servir e outra para receber dinheiro.  ​

Tem pão de queijo também?

Dos bão viu, esse é assado cedinho.

​Me contou que levanta cedo, passa na casa da Alzira e traz os pão de queijo assado e quentinho, tudo de bom, segundo ele, feito com o melhor polvilho da região. Só compra dela porque sabe que é gostoso. 

Vou querer café e pão de queijo também.

​Riu alto, balançou a barriga avolumada. Eu ri também. Ah! O dia estava para sorrisos… 

Os cliente aqui tudo gosta, já passa aqui e come com o cafezinho. Vou te contar uma coisa. Ano passado eu passei o ano todinho trazendo duas garrafa de café, uma com açúcar e outra, sem. Cê acredita que eu voltava com a garrafa de café sem açúcar cheia? Falei comigo, num dá! Olha pra senhora vê, ninguém tomava esse café sem açúcar. 

Pode me chamar de você.

Pois, né! Cê vê isso, de tanto voltar com a garrafa cheia de café sem açúcar, parei. Uai! Tava desperdiçando.

​E ele sorriu de novo, mostrando os dentes alumiados, suas gargalhadas balançavam, subiam e desciam.  

Pois é, vai esse café com açúcar mesmo, hoje o dia vale, o dia está doce.

kkkkkk, 

Não te conheço, você é nova por aqui? 

Ah!! Moro longe, venho aqui de vez em quando.

​ Ele serviu o café, pegou o pão de queijo, tudo quentim e cheiroso. Hum que delícia! Tomei devagar para não queimar o céu da boca. 

Nossa! Que café bom, a gente não sente o doce e, ao mesmo tempo, tem o amarguim do café. ​E não é… falei procê. Tem café doce que a gente toma e chega ARRIPUNA, meu café não é desses, não.

Agora está explicado. Entendi o segredo do seu café. 

O quê!? 

​Ele se fez de desentendido, queria escutar mais sobre o gostinho do seu café. 

Tá explicado porque o senhor parou de fazer café sem açúcar, com esse cafezinho aqui, doce sem doce demais que nem parece que leva açúcar, ninguém pede o outro não…

kkkkkkkk num expriquei… num disse?

​Terminei de apreciar aquele café, passaram mais de três clientes e eu ali, desfrutando da prosa, do dia, do cafezim e deixando o par de amor à vontade do outro lado do parque. Ele me contou que por ali passa muita gente e que ele escuta muitas histórias e que, assim como a vida, ouve coisas boas e coisas ruins.

Então o senhor é um escutador de histórias?

kkkkkk. Oh… minha fia, a gente tá nesse mundo e tem de aprender a viver, tem de tudo nessa vida.

Chegou a hora de tomar a água de coco.

Agora pode, vou pegar a mais gelada aqui da caixa. 

​Sempre sacudindo a barriga e mostrando os dentes dourados. Me fazia sorrir também.

​Pegou o dinheiro, devolveu o troco, lavou as mãos antes de manusear o coco. Cortou para abrir um orifício que coubesse o canudo.

Seus dentes são de ouro?

​Tomou um susto, fechou o semblante, pareceu-me envergonhado.

De bronze.

​Não sorriu mais. Escondeu os dentes. Senti, mas nada disse, soube que havia extrapolado o limite da boa vizinhança. Ao me despedir fui cuidadosa com as palavras dizendo que havia gostado de ter ficado sentada na companhia dele.

Volte mais… não riu, não gargalhou, não sorriu.

​Na metade do caminho lembrei que não sabia o nome dele, voltei aflita com o coração no peito, com uma urgência de salvar vidas. Algo a faltar, algo por dizer, algo que havia ficado pelo caminho. Encontrei-o sorridente atendendo outros clientes.

Oi! Esqueci de perguntar o seu nome!

Kkkkkkk. 

​A barriga subia e descia e as gargalhadas também.

Raimundo.

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Respostas de 22

  1. Adorei, uma narrativa que a gente tem vontade de ler até o final pra ver como termina a vivência do momento com o seu Raimundo dos cocos e o café com açúcar kkkk

  2. O entusiasmo do vendedor contrasta com a simplicidade do seu trabalho e mostra que a rotina não necessariamente corrói- seja convivências ou gosto pelo que se faz. Um encontro inesperado pode ser suficiente. Boa história

  3. Gente! Que pedaço de vida gostoso! Parque, água de coco, disponibilidade para observar, conversar e descobrir que há encantos até no doce de um café! Como sua escrita é agradável Denise!!! ♥️

  4. Amei a narrativa! Me prendeu até o fim: criativa, leve e doce na medida certa, como o café do seu Raimundo. Uma prova de que o menos sempre é mais!!!

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